Quando eu entrava em disputas de Banco Imobiliário e War (aviso aos
jovens: jogos de tabuleiro), decidíamos mudar as regras para fazer com o que
elas andassem mais rápido. Quem já passou horas em intermináveis contendas com
dados e pecinhas (sim, havia diversão antes do Pokémon Go e do Candy Crush),
tentando 'Conquistar a Totalidade da Ásia e da América do Sul', sabe bem do
que estou falando.
Depois, a gente cresce e percebe que há quem tente o mesmo na vida real.
Por exemplo, defenestrar parte da legislação que regula o mercado de trabalho
no meio do jogo é uma opção defendida para acelerar o crescimento econômico. O
problema é que a realidade – ao contrário dos jogos de tabuleiro – é feita de
pessoas de carne e osso que não podem simplesmente recomeçar, com menos
dignidade, no meio do caminho.
Informatizar, desburocratizar, reunir impostos e tornar mais eficiente a
relação de compra e venda da força de trabalho é possível e desejável e
certamente irá gerar boa economia de recursos para empresários e de tempo para
trabalhadores.
Desonerar a folha de pagamento em alguns itens, como diminuir a
contribuição previdenciária para setores que usam grande quantidade de mão de
obra é possível também. Isso sem contar que ninguém é contra sobrepor o que é
negociado entre patrões e empregados/sindicatos ao que está legislado – desde
que isso signifique ganhos reais para ambos os lados.
Para tanto, seria necessário um melhor equilíbrio de forças, com
sindicatos mais fortes e a garantia de contrato coletivo de âmbito nacional
para mantendo responsabilidade do setor econômico para os subcontratados.
O problema é que por trás do discurso do “vamos avançar” presente entre
os defensores desta Reforma Trabalhista está também o desejo de tirar do Estado
o papel de mediador da relação entre patrões e empregados, deixandoos organizando
suas próprias regras. Quando um sindicato é forte e seus diretores não jogam
golfe com os diretores das empresas, nem recebem deles mimos, ótimo, a briga é
boa e é possível obter mais direitos do que aquele piso da lei. Mas, e quando
não, fazse o quê? Rezamos?
Quando alguém promete uma reforma trabalhista sem tirar direitos
dos trabalhadores irá provavelmente:
- a) mudar a CLT e acrescentar direitos aos
trabalhadores e tirar dos empresários (posso contar também a do papagaio que
passava trote ao telefone);
- b) desenvolver um novo conceito do que seja um
direito trabalhista (situação em que o pintor surrealista René Magritte diria:
“isto não é um cachimbo”);
- c) diminuir a arrecadação do Estado junto às
empresas e manter os direitos dos trabalhadores (esperando que o país quebre em
3, 2, 1…);
- d) vai operar um milagre mais espantoso do que
aquele de multiplicar pães e peixes para uma multidão faminta realizado pelo
grande sábio barbudo (neste caso, Jesus, não Marx).
A sociedade mudou, a estrutura do mercado de trabalho mudou, a
expectativa de vida mudou. Portanto, as regras que regem as relações
trabalhistas e a Previdência Social podem e devem passar por discussões de
tempos em tempos.
Ou seja, caso se encontrem pontos de convergência que não depreciem a
vida dos trabalhadores e não mudem as principais regras do jogo no meio de uma
partida sem a concordância de todos, as relações trabalhistas podem passar
também por modernização. Tem muita coisa na CLT que passou da hora de ser
alterada. Mas o seu coração – impedir que o natural desequilíbrio entre
trabalhador e capital seja aprofundado – deve ser preservado.
Essa discussão não pode ser conduzida de forma autoritária ou em um
curto espaço de tempo. Pois essas decisões não devem servir para salvar o caixa
público, o pescoço de um governo e o rendimento das classes mais abastadas (que
brigam contra impostos sobre lucros e dividendos e sobre a progressividade do
imposto de renda), mas a fim de readequar o país diante das transformações
sociais sem tungar ainda mais o andar de baixo.
Por exemplo, falar em imposição de 25 anos de contribuição para
assalariados urbanos e rurais e 15 anos de contribuição para trabalhadores
rurais da economia familiar, como pequenos produtores e pescadores, sem
considerar que os mais pobres começam a trabalhar mais cedo, é desconhecer a
realidade – para ser polido.
Em lugares em que estatisticas de mortalidade apontam para uma sobrevida
menor após os 60 anos que a média do país, como o interior Maranhão, os
aposentados não têm o mesmo tempo para usufruir de suas pensões que em lugares
onde a segurança social é maior.
O Congresso já aprovou a terceirização de todas as atividades de uma
empresa – e não apenas serviços secundários, como é hoje. É claro que a relação
entre prestadoras de serviço e empresasmãe precisam de regras melhores no
Brasil, porque muita gente fica ao relento. Mas a aprovação da terceirização da
atividadefim do jeito que foi feita, dando a possibilidade de externalizar
qualquer função de uma empresa, vai piorar a vida de muita gente e reduzir a
arrecadação da própria Previdência. Armamos uma bombarelógio e o próprio
Ministério da Fazenda sabe disso.
Agora o governo quer aprovar a Reforma Trabalhista, permitindo que
convenções e acordos coletivos de trabalho negociados entre patrões e
empregados prevaleçam sobre a legislação trabalhista, mesmo que isso signifique
perdas aos trabalhadores.
Como já disse, negociar tendo como base nosso sistema sindical, que em
muitos casos serve aos interesses dos próprios sindicalistas e não dos
trabalhadores, será entregar o galinheiro à raposa. Jornadas de trabalho mais
longas, que devem ter impacto na segurança e na saúde dos empregados e sem o
devido pagamento de horasextras, são esperadas após o Congresso passar a lei.
Antes de qualquer reforma, seria importante melhorar a regulação do
mercado de trabalho (aliás, regulação é algo péssimo por aqui), desenvolver a
qualificação profissional de forma a gerar empregos mais sólidos, melhorar o
sistema de ingresso nesse mercado (o que inclui dar efetividade ao serviço
nacional de intermediação de mão de obra, pois o que existe em boa parte do
país é o bom e velho 'gato' intermediando) e, é claro, a redução na jornada
sem redução de salário – pleiteada pelos trabalhadores e empurrada há anos.
O cidadão deveria ter o direito de escolher um mandatário de acordo com
a agenda que ele propõe para os direitos trabalhistas e previdenciários. Com um
programa de governo debatido, votado e eleito. Mas, aí, desconfio que não
aconteceriam reformas.
Parte dos jogadores está mudando as regras no meio do jogo, na surdina.
Os demais só perceberão o golpe quando for tarde demais e eles tiverem sido
excluídos do tabuleiro.