A
PEC 287, que começa a ser debatida no Congresso Nacional, expressa claramente o
que vem sendo chamado de “narrativa da pós-verdade”, característica também do
que os acólitos do presidente Trump designam como “fatos alternativos”. A
proposta governamental se fundamenta em supostos altamente discutíveis e
controversos, que longe de esclarecer a população, a confunde, funcionando como
marketing de um caos que certamente não acontecerá.
Alguns dos
elementos falaciosos que embasam o discurso oficial:
1. A expressão “a
reforma da previdência”, que frequenta com assiduidade a mídia escrita e
televisiva é uma expressão mistificadora. Não existe uma única possibilidade de
reforma e sim várias. Pode-se pensar em reformas que visem ampliar a cobertura
previdenciária, em reformas que reduzam as desigualdades de acesso aos
benefícios, assim como pode-se propor, como é o caso em pauta, de
reformas que excluam os segmentos mais vulneráveis da proteção previdenciária.
2. A previdência
social não é, como também vem sendo alardeado pela grande imprensa e pelo
governo, matéria técnica, meramente atuarial, de finanças públicas. Desde
que foi introduzido na Europa, em fins do século XIX, o seguro social se
configurou como uma modalidade de contrato radicalmente distinta do seguro
privado por várias razões, entre as quais se destacam a obrigatoriedade de
filiação dos trabalhadores, bem como das contribuições de empregados e
empregadores, e a natureza política das decisões que o envolvem.
3. No Brasil, a Constituição de 1988,
num movimento tardio em relação aos países desenvolvidos, estabeleceu, em
substituição à proteção previdenciária stricto sensu, um sistema de seguridade
social, nos moldes daqueles existentes nos ditos países desenvolvidos. Sistema
esse que, incorporado à Declaração de Direitos Humanos da ONU, em 1948,
expande benefícios, desvinculando-os, em parte, das contribuições que
caracterizam o seguro social. A Constituição estabeleceu, também, um leque
diversificado de receitas para fazer face às responsabilidades da sociedade e
dos poderes públicos, de oferecer proteção, em caráter universal, a todos os
brasileiros.
4. A seguridade social no Brasil, no
entanto, embora mantida no texto da Lei Maior, foi progressivamente desmontada
desde 1990. É nesse desmonte, acrescido de mecanismos redutores das
receitas da seguridade, que se encontra o fetiche do “rombo da previdência”.
Pois em 2015 a seguridade apresentou saldo positivo de 24 bilhões de
reais (todas as receitas constitucionalmente estabelecidas para a seguridade menos
todas as despesas de seguridade que incluem despesas previdenciárias, com saúde
e com assistência social), um superavit inferior ao de 2014 (R$ 53,8 bilhões)
mas, mesmo assim, expressivo.
5. Quando o governo
apresenta o deficit da previdência incorre nas seguintes omissões: a) só computa os valores de
contribuições de empregados e empregadores, deixando de mencionar a existência
das demais receitas estabelecidas pela Constituição (Cofins, Contribuição sobre
o Lucro Líquido das Empresas); b) não faz referência ao montante
retirado da seguridade pela DRU (Desvinculação das Receitas da União), que
atingiu, em 2014, 63 bilhões de reais; c) desconsidera as desonerações de
impostos, contribuições sociais e folha de pagamentos das empresas, que operam
como redutores das receitas da seguridade em geral e da previdência em
particular; d) faz
tábula rasa da distinção entre o Regime Geral da Previdência Social, que é
universal ainda que atenda fundamentalmente aos trabalhadores da iniciativa
privada, e os chamados Regimes Próprios, que contemplam servidores públicos,
civis e militares, da União, estados e municípios.
6. Finalmente, outra falácia que
sustenta o discurso oficial (com a ressalva de não encerrar a lista de
elementos falaciosos presentes na narrativa do governo), é a de que existe uma
unanimidade internacional no que diz respeito às tendências reformistas no
campo da previdência social. As estratégias de enfrentamento dos problemas que
direta ou indiretamente incidem sobre os sistemas de proteção social (problemas
demográficos, orçamentários, decorrentes das mudanças no mercado de trabalho,
etc.) são variadas. E, sobretudo, não são apresentadas como alternativas a uma
situação imediata e aterrorizante de caos. Ao contrário, entram na agenda de
debates amplos e abrangentes, resultando em medidas a serem tomadas
gradativamente ao longo de muitos anos.
Maria Lúcia
Teixeira Werneck Vianna, professora
associada da UFRJ